Botafogo é pai
Legado de família: um amor pelo Botafogo que despreza a frieza dos números
Arnaldo Bloch
Peço licença para voltar após breve intervalo a falar de meu pai, que partiu
há um mês. “Ele morreu”, avisou Leonardo, minutos antes de se apagarem,
suavemente, sem agonia, os refletores de suas retinas, como se assistisse, da
arquibancada, à sua própria saída de campo. “Você está me vendo?”, perguntou
Iná, que passara meio século a seu lado. “Estou”, respondeu Leonardo, e foi sua
última palavra. Quando Iná perguntou pela segunda vez, seus olhos estavam alvos,
translúcidos, e seu coração já não pulsava. Se desta vez não foi possível
salvá-lo de seu encontro com o desconhecido, ao menos Leonardo foi poupado de
testemunhar, três semanas depois, o segundo rebaixamento de seu querido
Botafogo, embora isso não fosse aborrecê-lo tanto assim: nas temporadas
recentes, referia-se à equipe de General Severiano com palavras e frases de uma
perplexidade exausta:
— É a isso que você quer que eu assista?
Ou, então, com a mão apontada para a TV e uma careta de estudada
amargura:
— Fabuloso! Fabuloso!
Nas últimas rodadas de sua vida não se dava mais ao trabalho de ligar o
aparelho quando eu propunha que acompanhássemos juntos um jogo, mesmo que fosse
o clássico contra o Santos, que sempre o entusiasmara.
— Que me interessa? — respondia, à moda da regência ancestral da família,
alongando as sílabas para pontuar o tédio.
A cada uma dessas sentenças, olhava para minha cara como se me imputasse
alguma culpa pela decadência alvinegra. A culpa, ele bem sabia, era dele, que
escolhera o glorioso, bem verdade que num tempo em que fazia jus à alcunha. Era
o time de toda a família, embora Adolpho, líder do clã, secretamente apostasse
fichas paralelas no Flamengo por motivos que nada tinham a ver com paixão
clubística.
— Quando o Flamengo ganha, é bom para o Brasil e vende mais revista —
cochichava após algum triunfo rubro-negro mais notável.
Assim, quando acordei para a vida, já vestia a camisa de listras verticais
alternando o preto e o branco. Do lindo escudo no alvo, altiva, avulsa, a alva
estrela era cravada. Já contei, e reconto, da remota noite em que saímos do
Maracanã após uma derrota e papai caiu, meio corpo, num buraco enlameado,
arremedo de bueiro. Um senhor que passava ajudou a resgatá-lo.
Dali em diante — sabedor de que a vida alvinegra (ou seja, a vida) seria
plena de percalços, poços pantanosos, derrotas e alguns dias de um luzir tão
belo que quase não se crê — jamais lamentei uma das mais belas heranças que
Leonardo me legou, desde menino: este amor que despreza a frieza dos números,
que deseja a vitória mas não precisa dela para afirmar uma identidade terrena,
na qual a fúria supremacista é a negação do real. Pois no real o belo não é um
estado permanente, mas uma onda imanente, frágil lanterna a estudar os atalhos
do caos.
Penso, junto com a memória de papai, nos que, confrontados com esse amor
incondicional, resignado, na derrota ou na vitória, natural da cultura
alvinegra, respondem com assertivas tolas como “o futebol é só um jogo”, ou
seja, não faz parte da vida nem a influencia. Essas almas obtusas, que só
conseguem enxergar no esporte o horizonte de conceitos algo medonhos como
“hegemonia”, são as mesmas que chegam em casa de cara fechada após uma derrota,
vão dormir sem beijar o cônjuge ou os filhos e se acham uns fracassados por
causa daquilo que ora julgaram ser apenas um passatempo.
Quando fiz 13 anos, papai me deu um título de sócio-proprietário do Botafogo
após adquirir um para ele mesmo. Décadas depois, quando o time descendeu pela
primeira vez à Segundona, colhi os primeiros frutos de tão valoroso patrimônio
ao receber uma carta de Bebeto de Freitas com uma proposta de anistia de uma
dívida que somava pelo menos meia-dúzia de anos. Eu simplesmente me esquecera de
pagar as mensalidades por um motivo reles: ao primeiro atraso, o clube parava de
enviar os boletos e dispensava qualquer providência de cobrança.
Na carta enviada a uma horda de sócios inadimplentes, Bebeto propunha saldar
a bolada com um único cheque de R$ 800. Em troca, eu me tornava integrante do
programa Botafogo no Coração, e ganhava o direito de assistir a qualquer partida
do Brasileirão no simpaticíssimo estádio de Caio Martins, em Niterói, em lugar
cativo.
Naquela temporada, não perdi nenhum jogo em que o Botafogo foi mandante. E
consegui arrastar papai para um, não me lembro qual, mas que terminou com
vitória. Enfrentamos algum aperto na entrada.
O corpulento Leonardo, cujo ritmo de caminhada eu sempre tivera dificuldade
de seguir, começava a dar os primeiros sinais de preguiça, mas resolveu o aperto
passando um papo no bilheteiro. Enfrentamos aquela tarde-noite com bravura, e
saímos de mãos dadas, comemorando. Não havia fossos de lama, e chegamos em casa
imersos na paz.
Ainda sinto o cheiro de seu perfume de pai.
Há dias bons e ruins e não há vitórias que sejam para sempre. O Botafogo
caiu. Papai subiu. Não é um jogo. É a vida.
Crônica publicada em
O Globo