Desde a primeira vez que te vi, sabia que era encrenca. Das
grandes. Meu sexto sentido me avisou. Mentira! Avisou nada... Mas é que estava muito óbvio,
sabe?! Com certeza você chegara só pra rir da minha cara de “menininha
assustada”. E eu sabia. Mas não agia. Ainda que eu te arrancasse mil vezes, mil
vezes você renasceria mais resistente (e olha que eu tentei). Numa estratégia
quase que suicida resolvi te ignorar. Como se o fato de te virar as costas fizesse
você se teletransportar para um planeta distante, desses descobertos por
cientistas que dão nomes femininos às suas raridades, numa intenção mais
caricata do que o discurso de Michelle Obama na Convenção do seu Obama “I have
a dream”.
Abusei enquanto pude do meu direito de espernear, de
pirraçar. Você antecipava a minha derrota, sem saber que eu já entrara no jogo
vencida. Era só uma questão de tempo. Quando cansei, resolvi agir porque, néam,
“nada como um dia após o outro” (que profundidade!). Eis que o sol raiou e eu
pensei:
“agora vou mudar minha conduta,
eu vou pra luta,
pois eu quero me arrumar.
Vou tratar você com a força bruta,
pra poder me
reabilitar...”
E, naquilo que seria o meu terceiro impulso do ano (eu sei, eu
sei, a média é baixa), peguei o telefone e liguei:
-Boa tarde...vou querer o bordeaux...
-Como? Ah, boa tarde! A “senhora” então se
decidiu?! O bordeaux 19 ou o 23?!
-O 23...o mais forte...entregam hoje?
-Sim, agora mesmo. O 23, né?!
-Obrigada!
Desliguei
o telefone, olhei no meu espelho e... RAAÁ! Te mostro já quem manda, mas te
adianto uma pista; EU, EU e EU !! EU vou esconder você numa tinta bordeaux divina e
somente EU vou saber que você existe, e caberá
somente A MIM assumi-lo ou não algum dia! Você pode ficar mas EU estou no comando agora, entendeu? Entendeu? É isso...
O que que foi? O que que tá olhando...tá vendo
alguma coisa diferente aí?! Um cabelo branco, talvez?!
(Clara Gurgel)