17 de novembro de 2020

Tentando entender Bolsonaro- por Antônio Serra

 TENTANDO ENTENDER BOLSONARO

... e alguns outros
Por ANTÔNIO SERRA, Professor de Filosofia da UFF e ex-Diretor do Instituto de Artes e Comunicação Social (IACS)
O discurso aparentemente errático, o apelo a preconceitos, fabulações, fatos inverídicos, deturpações manifestas, argumentos tortuosos, mentiras deslavadas, etc., etc., comporiam um esquema de “negação sistemática da realidade” e, por meio disto, de se consolidar como fonte hegemônica e talvez única de estabelecer o que é a “realidade”.
Não se trata apenas de peculiaridade pessoal desses e de outras figuras, mas de uma forma complexa de lidar com a realidade que tem sua história estreitamente ligada à da mídia no século 20.
Creio que um personagem decisivo para compreender o que se passa é um alemão que desempenhou papel importantíssimo durante a república de Weimar e que foi determinante e indispensável para a ascensão de Hitler e sua conquista do poder, mas que em seguida foi eclipsado.
Trata-se de Alfred Hugenberg (1865 – 1951), na foto, empresário, político, com formação universitária rigorosa e do qual, para resumir, podemos dizer o seguinte:
1º) Foi ele que formulou com precisão o projeto de colonização alemã de países do leste europeu como sendo a única maneira de oferecer terra e prosperidade aos agricultores alemães e desse modo criar uma Alemanha poderosa, além de anular a influência embrionária dos socialistas no campesinato;
2º) Foi ele que expôs claramente a extinção do povo polonês como ingrediente indispensável deste projeto;
3º) Foi ele que, na administração das indústrias Krupp e em direta aliança com o Kaiser, estabeleceu a doutrina do papel estratégica da alta indústria alemã para formar a infraestrutura militar necessária à disputa fatal que a Alemanha teria de travar com a Inglaterra, os EUA e a Rússia em sua busca de “espaço vital”;
4º) Foi ele que enfaticamente atribuiu ao sistema democrático o caráter de obstáculo ao progresso e afirmação da Alemanha, defendendo sua extinção e franca substituição por um regime autoritário;
5º) Foi ele que “inovou” a forma de condução partidária suprimindo os mecanismos democráticos no partido nacionalista do qual se apossou e estabelecendo uma forma de direção superior e incontestável sob um “führer”;
6º) Foi ele que percebeu a limitação de seu grupo político de direita nacionalista para ganhar eleições e que seria preciso encontrar uma liderança capaz de falar com as massas, tendo enfim identificado em Hitler e em seu partido nazista este personagem;
7º) Tanto o partido nacionalista quanto o nazista haviam murchado muito em eleitorado e se encaminhavam ou para extinção ou para se tornarem insignificantes. Este esvaziamento se deu sobretudo graças à franca recuperação econômica da Alemanha. Com a crise de 1929, entretanto, a economia alemã, como quase todas do mundo, trepidou, e Hugenberg viu nisso a chance de reabilitar o discurso nacionalista, a acusação de que a situação da Alemanha era resultado do cerco e opressão das democracias liberais que a haviam derrotado em 1918, que esta derrota fora causada em última instância por alemães traidores (principalmente socialistas e comunistas, mas também liberais – no que já se podia incluir os judeus), e assim por diante;
8º) Ora, Hugenberg se tornara também o magnata da mídia na Alemanha, dono do maior número e mais populares revistas e jornais, além de proprietário da principal empresa cinematográfica não só alemã mas mundial, a UFA (a “Universal” alemã), responsável por sucessos como Metropolis, O Gabinete do Doutor Caligari, Anjo Azul e muitos outros;
9º) Assim, Hugenberg convence seus aliados a “adotarem” Hitler e seu partido para o “usarem” (ele antes se opunha a Hitler), para o que a providência decisiva foi justamente expor Hitler na mídia de forma intensa;
10º) Hitler passa então a estar presente nas primeiras páginas dos jornais e em seu miolo e, sobretudo, no cinejornal mais importante da época, a Alemanha em Revista, com isso catapultando a popularidade de Hitler a um nível sem concorrência por outros líderes e partidos, o que lhe garantirá crescimento eleitoral significativo e lugar na mesa de protagonistas da distribuição de postos de governo em uma república já em fase de crise aguda e acelerada, quando é a figura do marechal Hindenburgo, veterano herói de guerra, homem de direita e monarquista que, como Presidente, passa a governar por decretos e finalmente entrega a chancelaria a Hitler;
11º) O sistema midiático de Hugenberg ataca frontalmente os socialistas, comunistas, liberais e a própria Constituição republicana, e faz o reiterado atestado de óbito da democracia como sistema de governo;
12º) Como parte da aliança, Joseph Goebbels é integrado neste esquema e particularmente na função midiática e de propaganda.
Desse modo, implementou-se a forma particular de construção de realidade que não só permitiu a disputa de narrativas com vitória nazista, como desqualificar oponentes, condenar à extinção povos e etnias, e também assim manipular os “fatos” durante a segunda guerra, pretendendo metamorfosear avanços em vitórias irreversíveis e derrotas em tática inteligente.
Durante o período de consolidação do regime nazista e depois ao longo da guerra, foi este sistema de produção discursiva e representação factual, imaginária e axiológica da realidade que dominou a Alemanha (e mesmo países aliados e quintas-colunas), a ponto de até contaminar seus gerentes, que começaram também a perder o senso de realidade, como se viu no final da guerra.
É um sistema que ganha projeção descomunal com os novos formatos de comunicação e que adquire capacidade dupla de se auto alimentar e, com isso, depender menos da “autoria” identificada, parecendo, portanto, seja mais “espontâneo”, seja como emergente mesmo da própria realidade.
Eis aí algo que precisa ser bem estudado e não meramente posto de lado ou combatido como mera aberração. A atitude de se impor à realidade por meio do discurso e da imagem, que George Orwell ilustrou de modo brilhante e emocionante, já não depende sempre de uma enclausuramento do público por mecanismos censórios e policiais (o que não quer dizer que estes não sejam também usados), mas pode buscar uma espécie de “naturalização” ou “normalidade” em que parte ou maioria do próprio público sejam os operadores e criadores dessa “realidade”.
É um fenômeno que tem raízes no psiquismo e na experiência cultural da espécie humana, mas que alcançou, com a tecnologia inédita destes tempos, um efeito gravíssimo: o do ocultamento da realidade e de sua apreciação crítica, pois isto certamente pode conduzir pessoas, sociedades e até a espécie a becos sem saída e a enfrentar desafios súbitos sem dispor de repertório para enfrenta-los.
PS. 1) No filme De Volta para o Futuro, o Dr. Brown (Doc) não está acreditando que Marty McFly seja do futuro e então o submete a breve teste, chegando à pergunta sobre quem será o presidente dos EUA no ano de onde o rapaz se diz oriundo; Ronald Reagan, responde o jovem. Como? Impossível! Um ator de meia-tigela como esse, presidente? Mas logo Doc entende, pois já havia sido apresentado a uma câmera de vídeo e se dá conta de que no futuro era na TV que se construiriam as lideranças. 2) No caso da URSS e outros países semelhantes, a história tem paralelos importantes, começando pela percepção de Lenin da importância estratégica do cinema para universalizar, pela propaganda, a devida mentalidade indispensável ao novo regime. Mas é história que merece abordagem própria, como exige, por exemplo, o domínio da teoria genética de Trofim Lyssenko na URSS, inclusive influenciando resultados catastróficos na agricultura.
Oscar José Corrêa e Leo Baresi

Nenhum comentário:

Postar um comentário